Friday, February 22, 2008

"Da minha Língua vê-se o Mar"

Aqui no Brasil discute-se muito o Acordo Ortográfico. Acusam Portugal de má fé por não o ratificar. Para aqueles que, como eu, são da opinião de que "acordos ortográficos" apenas servem para compartimentar o português dentro de estreitos parâmetros que ignoram totalmente a miríade de manifestações linguísticas que o enriquecem, aqui vai um excepcional texto do Mia Couto intitulado "Perguntas à Língua Portuguesa".

"Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta. A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões?


Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou. Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio. No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas. Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro? Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências.


Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua: ·

Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo? ·

No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco? ·

A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética? ·

O mato desconhecido é que é o anonimato? ·
O pequeno viaduto é um abreviaduto? ·

Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente. ·

Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu? ·

Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado? ·

Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação? ·

O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim? ·

Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"? ·

Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço? ·

Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro? ·

Mulher desdentada pode usar fio dental? ·

A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel? ·

As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"? ·

Um tufão pequeno: um tufinho? ·

O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha? ·

Em águas doces alguém se pode salpicar? ·

Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério? ·

Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose? ·

Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo? ·

Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?


Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente."