Thursday, March 15, 2007

O Fantasma da Ópera

Eça de Queirós, acerca de uma récita da ópera D. Carlos de Verdi, no Teatro Nacional São Carlos (TNSC), em Lisboa:

"Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados num paninho torpe, sala roída pela traça, a velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas masculinos e femininos agrupados a um canto da cena, na escassez do seu número, elas com os seus braços nus mal lavados, eles com as suas botas enlameadas, soltam com gesto maquinal uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 36 - o que lhe tem feito perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos aos farrapos deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras quebradas: os que os assinam mobilam-no; os que o alugam limpam-no com um lenço. Uma iluminação funerária melancoliza a sala; os velhosdoirados sujos, têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos, enodoados, estão como o rosto de um carvoeiro. Os corredores, com os tapetes roídos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere e o portal de casa de jogo. Na superior cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas, e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de sair para a rua limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos como de réus erriçam a sua palhinha quase rota. O peristilo escuro tem um aspecto lamacento. As senhoras, esperam, ao pé dos municipais formados, a chegada dos trens. Um vento frio torna aquela paragem inóspita, - como diria um antigo.

E todo aquele teatro aparece com alguma coisa de pequeno, de provinciano, de plebeu e de pelintra."

Eça referia-se, nesta Farpa (As Farpas, Principia, p.307) a uma realidade que há muito deixámos de conhecer. Pela mão competente de Paolo Pinamonti, o TNSC tornou-se uma sala de espectáculos agradável, com um excelente temporada, não obstante as constantes restrições orçamentais por parte da tutela. Para além do fantástico ciclo de Óperas do Anel dos Nibelungos de Wagner (este ano Die Walküre), outras produções de nível europeu estão já agendadas para aquele espaço. Em Abril teremos o Motezuma de Vivaldi, ou o Macbeth de Verdi. Para trás ficaram já êxitos como o Cosi fan tutti do Mozart.

Pinamonti, durante o tempo em que assumiu as funções de Director do TNSC, dinamizou um espaço que estava fadado a se tornar um meio fechado, destinado a suprir as necessidades culturais de uma determinada elite lisboeta. A iniciativa de democratizar o fenómeno elitista operático, transmitindo em directo para o largo do TNSC as produções, foi excepcional, enchendo de cor e alegria uma zona da cidade que, por volta das dez da noite apenas era difusamente preenchida com alguns vultos de aspecto duvidoso.
Por outro lado, coube-lhe a dinamização do restaurante do TNSC e a remodelação do bar - local aprazível onde se pode tomar um copo simpático numa tarde solarenga.
A Pinamonti nunca conhecemos vícios. Não parece que roubasse dinheiro ao erário público. Apenas era competente. E honesto. Ao ponto de discordar do rumo que o Ministério da Cultura queria dar ao TNSC. E compreende-se porque discordava... Pelos vistos, Vieira de Carvalho tinha outros objectivos para aquele teatro nacional. Segundo o Secretário de Estado da Cultura, "queremos que o São Carlos seja um forte ponto de atracção turística. Que tenha oferta". Só falta dizer: "que dê lucro ao fim do mês!"

Desculpe? Querem transformar o TNSC num circo ou num parque de diversões? Há certas coisas que não podem ser olhadas de um ponto de vista puramente económico. A cultura não serve fins lucrativos, mas sim a formação das massas. Por outro lado, o TNSC é dos portugueses. Deve divulgar obras portuguesas (como aliás era o ensejo de Pinamonti), e deve servir, em primeiro lugar, os interesses do público luso.

Os Convencidos têm uma teoria para o súbito despedimento de tão competente "funcionário" do Estado: era um exemplo bom de mais para a incompetência e a pelintrice que se tem manifestado nos quadros da Administração Pública. Em Portugal não queremos pessoas competentes. Fazem-nos lembrar aquilo que somos: preguiçosos!

Perante as decisões inteligentes e ponderadas de Vieira de Carvalho e da Ministra Vieira da Silva, é caso para dizer asinus asinum fricat.

E mais não digo.